O vinho, com a sua história entrelaçada à humanidade, transcende o simples ato de beber. Ele carrega um legado de tradição, cultura e espiritualidade. Desde os banquetes da Roma Antiga até à Última Ceia, o vinho sempre foi mais do que uma bebida; ele é um elo entre o passado e o presente. Entre as práticas que permaneceram vivas ao longo dos séculos, destaca-se o uso das talhas de barro, uma técnica ancestral que ainda pulsa em vinícolas dedicadas a preservar esse método milenar.
Uma Jornada no Tempo
Voltemos ao início da era cristã.
Naquela época, o vinho era produzido em grandes recipientes de barro — as talhas.
Esses vasos, cuidadosamente moldados à mão e queimados em fornos rústicos, eram mais do que simples recipientes. Eles eram guardiões de uma alquimia natural, onde o mosto da uva se transformava lentamente em vinho sob a supervisão atenta dos viticultores.
O processo não depende de tecnologias sofisticadas. A uva era colhida à mão, esmagada com delicadeza e colocada nas talhas, que, em muitos casos, eram enterradas no solo para manter uma temperatura constante. O barro permite uma microoxigenação natural, essencial para o desenvolvimento do sabor e do aroma do vinho.
Talhas de Barro: Um Legado Vivo
Hoje, essa tradição ancestral resiste em regiões específicas do mundo, como na Geórgia, Portugal e algumas áreas do Mediterrâneo. Na Geórgia, o uso das qvevris — talha enterradas no chão — é considerado patrimônio cultural pela UNESCO.
Já em Portugal, principalmente no Alentejo, as vinícolas que produzem vinhos de talha mantêm viva uma herança que remonta aos tempos romanos.
Visitar uma vinícola dessas é como entrar em um templo do passado. O aroma do mosto em fermentação mistura-se ao cheiro terroso das talas e ao silêncio reverente do ambiente. As paredes rústicas contam histórias de gerações que dedicaram suas vidas a esse ofício, e o vinho produzido ali carrega uma complexidade única, com sabores profundos e terrosos.
O Processo em Detalhes
Tudo começa com a escolha das uvas, que precisam ser colhidas no ponto ideal de maturação. Após a colheita, as uvas são esmagadas manualmente ou com a ajuda de prensas simples, como se faziam há dois mil anos. O mosto, juntamente com as cascas e sementes, é transferido para as tallhas.
As talas são revestidas internamente com cera de abelha, um detalhe que reforça a impermeabilidade sem impedir as trocas naturais com o ambiente. Durante a fermentação, o calor gerado pelo processo é dissipado pelo barro, enquanto as cascas das uvas, que formam uma "tampa" natural, protegem o líquido de oxidações indesejadas.
Após a introdução, o vinho pode permanecer nas talhas por meses, adquirindo personalidade e complexidade. Só então é retirado, geralmente por meio de uma descoberta na parte inferior da talha, onde é cuidadosamente filtrado e armazenado.
Aqui estão alguns exemplos de vinhos produzidos em talhas, provenientes de regiões que mantêm essa tradição milenar:
1. Geórgia
A Geórgia é considerada o berço da vinificação em talha, chamadas de qvevris :
- Lágrimas de Faisão Rkatsiteli : Um vinho laranja (feito com uvas brancas fermentadas com cascas) produzido em qvevris .
- Vinho Chinuri de Iago : Vinho natural de grande personalidade, feito com a uva Chinuri em talhas de barro enterradas.
2. Portugal (Alentejo)
No Alentejo, a técnica das talhas é preservada com maestria:
- Herdade do Rocim – Vinho de Talha Branco : Feito com as castas típicas da região, como Antão Vaz e Perrum, fermentado em talhas de barro.
- Adega Cooperativa de Vidigueira – Vinho de Talha segundo : Uma opção autêntica, elaborada como tradições alentejanas.
- José de Sousa – Vinho de Talha Tinto : Produzido por José Maria da Fonseca, utilizando talhas originais da adega histórica.
3. Itália (Toscana e Sicília)
Alguns produtores italianos também adotaram as talhas de barro:
- COS Pithos Rosso (Sicília) : Um vinho biodinâmico envelhecido em ânforas (talhas).
- Fontodi Amphora (Toscana) : Produzido com uvas Sangiovese em ânforas para destacar a pureza da fruta.
4. Espanha (Andaluzia e Catalunha)
- Barranco Oscuro Talha 15 : Um vinho natural da Andaluzia, envelhecido em ânforas de barro.
- Celler del Roure Cullerot (Valência) : Vinho branco fermentado em ânforas enterradas, feito com variedades locais.
Esses vinhos são ótimos exemplos de como a tradição das talhas se mantém viva e como ela continua produzindo vinhos de qualidade excepcional, com perfis únicos e profundos.
Mais do que Vinho: Uma Experiência Sensorial
Degustar um vinho de talha é mais do que apreciar uma bebida; é conectar-se a uma cultura que desafia o tempo. Cada gole carrega uma história, uma terra, uma comunidade. É possível sentir a rusticidade do barro, a pureza da uva e o toque do saber ancestral.
Hoje, o renascimento dessa prática atrai enófilos de todo o mundo. Seja na Geórgia, no Alentejo ou noutras regiões que abraçam a tradição, os vinhos de talha oferecem uma experiência que transcende o simples prazer do paladar.
Ao abrir uma garrafa ou taça de vinho produzido em talha, você não está apenas bebendo vinho. Está tocando a história com os lábios, permitindo que séculos de tradição desçam suavemente pela sua alma. Afinal, o vinho, assim como a humanidade, é eterno em sua capacidade de nos fazer sentir, refletir e celebrar.
Madame Wine: Despertando o Passado em Cada Taça.
Comentários
Postar um comentário